Reformatio in Pejus ou reforma em prejuízo
Breves lições acerca da possibilidade da administração reformar uma decisão em prejuízo do particular interessado que provocou a reforma.
A administração pública, por ser responsável pela representação dos interesses da coletividade, possui um regime jurídico-administrativo próprio. Este regime se diferencia pela existência de prerrogativas próprias da administração, bem como de restrições peculiares, todas em virtude dos princípios norteadores da atividade do Estado.
Dentre esses princípios, se destaca o da legalidade, que vincula todos os atos da administração à estrita observância da lei e do direito, sendo o interesse público, portanto, auferido a partir do que é disposto na legislação.
O funcionamento da administração executado através de sua manifestação de vontade ocorre por meio de atos administrativos, e estes devem ser sempre escritos, em virtude do cumprimento da forma prescrita em lei. Dessa forma, todos os atos da administração se formalizam em procedimentos administrativos, que são a sucessão ordenada de atos, dentro dos moldes previstos pela lei.
Importante diferenciar, neste momento, o processo e o procedimento administrativo. Enquanto este se refere aos aspectos externos ou formais, aquele se refere aos aspectos internos ou substanciais que por sua vez dizem respeito à relação jurídica que se instaura e se desenvolve entre Autor, Réu e Juiz ("actum trium personarum").
Dentre os princípios específicos do direito administrativo consta o da autotutela, que garante à administração o poder/dever de anular seus próprios atos quando eivados de ilegalidade e a faculdade de revogá-los quando melhor atender ao interesse público por razões de oportunidade e conveniência. Isso pode ser verificado a partir das Súmulas nº 346 e 473 do Supremo Tribunal Federal (STF):
SÚMULA nº 346: A administração pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos.
SÚMULA nº 473: A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.
Além disso, dentre os poderes constantes do regime jurídico-administrativo do Estado estão o poder disciplinar, que permite à administração a aplicação de penalidades aos seus agentes em função de infrações funcionais, e o poder de polícia, que permite à administração suprimir ou restringir direitos individuais em defesa do interesse público. Pois bem, desta forma os processos administrativos sancionatórios podem buscar a penalização de agente público como medida disciplinar, ou de sujeito administrado em função do poder de polícia.
É no contexto do processo administrativo sancionatório (disciplinar ou não) que surge a questão da "reformatio in pejus" ou reforma em prejuízo. Seu conceito se traduz na possibilidade da Administração (juiz) reformar a sua decisão em prejuízo da própria parte que apresentou recurso administrativo em face dela. Esta possibilidade, em que pese sua inaplicabilidade em outros ramos do direito, decorre da redação da Lei nº 9.784/99, que regula o processo administrativo em âmbito federal:
Art. 64. O órgão competente para decidir o recurso poderá confirmar, modificar, anular ou revogar, total ou parcialmente, a decisão recorrida, se a matéria for de sua competência.Parágrafo único. Se da aplicação do disposto neste artigo puder decorrer gravame à situação do recorrente, este deverá ser cientificado para que formule suas alegações antes da decisão.
A questão da reformatio in pejus, contudo, não é pacífica na doutrina nem na jurisprudência, e comporta três entendimentos:
1) Minoritário: Entende que é possível a reforma em prejuízo caso a Administração se funde nos princípios da legalidade, indisponibilidade do interesse público, inquisitivo, oficialidade e verdade material;
2) Majoritário: Entende que não é possível a reforma em prejuízo, mesmo nos termos da Lei nº 9.784/99, posto que seria incompatível com o princípio do devido processo legal previsto na Constituição;
3) Misto: Há ainda uma corrente mista que entende ser possível a reformatio in pejus em alguns casos de acordo com alguns critérios, porém, não há consenso acerca destes critérios.
Oportuno, portanto, distinguir a reformatio in pejus do controle de legalidade, visto que esse corresponde à correção da inadequação de um ato à lei; ao passo que na reformatio in pejus não há juízo de legalidade, mas uma reapreciação de mérito da decisão recorrida. Fala-se, nestes casos, em reformatio in pejus "aparente".
No que se refere à Lei nº 9.784/1999, impende destacar que se no artigo 64 admite-se a aplicação da reformatio in pejus nos recursos administrativos, por outro lado veda expressamente na hipótese de revisão, conforme dispõe o artigo 65. De forma que na revisão, a decisão recorrida só poderá ser reduzida ou anulada.
Art. 65. Os processos administrativos de que resultem sanções poderão ser revistos, a qualquer tempo, a pedido ou de ofício, quando surgirem fatos novos ou circunstâncias relevantes suscetíveis de justificar a inadequação da sanção aplicada.Parágrafo único. Da revisão do processo não poderá resultar agravamento da sanção.
Convém ainda, ressaltar que revisão não se confunde com as demais figuras recursais por presumir "coisa julgada administrativa", consistindo apenas no reexame da decisão proferida, após o exame de admissibilidade.