O Casamento entre a Convivência e os Afetos
Trata da análise da possibilidade de ser reconhecida uma União Estável mesmo que um dos parceiros ainda esteja casado, quando não foram tomadas as providências para formalizar o divórcio.
O Amor sempre busca seu próprio caminho. Enquanto o casamento entre duas pessoas é um ato extremamente formal, que tem início e fim muito bem demarcados pela Lei e minuciosamente documentados, a união estável, em sentido oposto, é um relacionamento informal que não depende de qualquer reconhecimento para iniciar ou para terminar. Mas há limites que nem o amor suplanta.
Sabemos que apenas a certidão oficial é o documento que faz prova do marco inicial de um casamento, sendo a averbação do divórcio o ato que demonstra seu fim. Por outro lado, a simples convivência do casal, desde que se manifeste de forma "pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família", é o suficiente para que seja reconhecida como uma união estável, gerando efeitos legais muito semelhantes ao casamento.
Entretanto, ao casar, uma pessoa assume voluntariamente determinados deverem que se presumem essenciais para o sucesso da sociedade de vida conjunta que se forma entre o casal. Dentre eles está o da fidelidade. Nessa esteira, no Direito Brasileiro, não se admite o reconhecimento de algum outro relacionamento amoroso paralelo eventualmente mantido por uma pessoa casada, considerando-o um ilícito civil, denominado concubinato.
Isso decorre da vedação legal ao reconhecimento de existência de uma União Estável nos casos em que as pessoas tenham qualquer dos impedimentos para o casamento previstos no Art. 1.521 do Código Civil. O inciso VI do referido artigo prevê que não pode casar a pessoa que já é casada, portanto também não pode ter reconhecida uma eventual União Estável paralela ao casamento.
Dessa forma, um relacionamento que seria considerado uma União Estável entre pessoas livres para casar não é assim entendido quando envolve uma pessoa na constância do casamento. Esse tem sido um dos temas mais efervescentes entre os discutidos pelos doutrinadores no Direito de Família, pois envolve paradigmas sociais e culturais muito robustos, confrontados com situações de injustiças que vitimam muitas pessoas, que viveram relações afetivas duradouras mas que acabam declaradas inexistentes.
Todavia, não obstante permaneça inafastável essa restrição explícita imposta às relações paralelas de pessoas casadas, a Lei não desampara completamente algumas situações que, comumente, ocorrem nos relacionamentos que se desenvolvem na nossa dinâmica sociedade contemporânea. Afinal, a vida é uma eterna movimentação das pessoas em busca da própria felicidade, que às vezes não está onde se pensava. Mudar o rumo de uma vida às vezes pode ser difícil na prática, fazendo com que determinadas ações acabem sendo proteladas, seja pelo seu custo ou pela sua aparente complexidade.
Embora o divórcio seja o marco jurídico que, por excelência, põe fim a um casamento (ao lado da morte de um dos cônjuges, por óbvio), comumente pode ocorrer que o casal resolva encerrar a vida em comum por conta própria, indo logo cada um para o seu lado e sem que as providência para oficializar esse término sejam tomadas de imediato. O motivo não importa, pois cada casal é quem deve saber o que lhe convém ou o que lhe prejudica. Basta que não exista mais a vontade de manterem-se casados.
Essa certamente não é a melhor estratégia, já que as pendências deixadas de lado frequentemente se misturam com as novas demandas e acabam criando um ciclo sempre crescente de complicações, tumultuando um momento da vida em que se deseja e procura um recomeço, com foco no futuro sem carregar os lastros indesejados de um relacionamento exaurido. Mas ainda assim é o caminho no qual muito ingressam, seja por escolha própria ou por falta de opção melhor.
Sem nos determos nos problemas que essa conduta possa acarretar, o fato é que a Lei reconhece essas situações de ruptura e atribui já alguns efeitos a essa separação informal. Dentre eles, o principal é a legitimação do novo relacionamento amoroso que eventualmente tenha se estabelecido com uma nova parceria, mesmo inexistente a decretação do divórcio, nos termos trazidos pelo 1.723, §1º, do Código Civil, que enumera os requisitos legais para o reconhecimento da união estável e faz referência expressa aos impedimentos ao casamento previstos no já mencionado Art. 1.521, mas afirmando, em seu parágrafo 1º, que o impedimento previsto no inciso VI (ser a pessoa casada) não se aplica "no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente".
Embora tecnicamente a pessoa apenas separada de fato ainda está casada, a exceção trazida pela Lei é fundamental e seu principal efeito é afastar qualquer caráter de ilicitude ao novo relacionamento, reconhecendo que não se pode falar em relação paralela ao casamento quando a convivência afetiva que a Lei protegia, na prática, já não mais existe, ainda que esteja pendente a necessária formalização para decretar juridicamente seu encerramento.
Por consequência, tendo sido afastado o impeditivo legal, nada mais obsta que possa ser reconhecida a existência de uma União Estável vivida por uma pessoa apenas separada, desde que estejam presentes todos os elementos previstos necessários, conforme estabelece o Art. 1.723 do Código Civil, sujeitando a todos aos efeitos legais dessa nova situação, não importando se esta já foi formalizada ou ainda apenas existe no mundo dos fatos.
Dessa forma, muito embora seja comum que algumas pessoas, já separadas, pensem que enquanto estiverem "casadas no papel" permanecerão sujeitas às mesmas obrigações e amparadas pelos mesmos direitos que regraram o seu casamento, isso não é correto. Trata-se de uma situação diferenciada e peculiar, com previsão e amparo legal próprios, de forma a respeitar a liberdade que cada pessoa tem para buscar um novo par afetivo, mas sem descuidar de reconhecer as consequências jurídicas e resguardar os direitos das pessoas envolvidas na nova relação.
Prevalece a vida que se escolhe para viver.
Crédito da Foto: Husband and wife photo created by katemangostar (freepik.com)
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Art. 1.521. Não podem casar: I - os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil; II - os afins em linha reta; III - o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante; IV - os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive; V - o adotado com o filho do adotante; VI - as pessoas casadas; VII - o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte.
Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. § 1 o A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente.